Hoje, o sistema de posse e uso da terra se constitui em uma continuação do sistema implantado no período colonial, com a sesmaria se transformando em grande propriedade latifundiária, que, tornando-se propriedade privada, é explorada pelo proprietário, que pode ser uma pessoa física ou uma empresa, com poderes ilimitados sobre a mesma. A transferência de propriedade se processa através de várias formas consagradas pela lei civil, como a secessão hereditária, por morte do proprietário, a compra, a venda, o usucapião, a doação etc. Quanto à doação, muitas vezes ela é feita pelo poder público a particulares que se comprometem, como os sesmeiros de antigamente, a iniciar o seu aproveitamento econômico dentro de certo prazo, são as chamadas terras devolutas. Como a terra em si não é mercadoria, mas um instrumento de produção, ela só se torna objeto de valor de troca quando realizadas nas mesmas certas atividades que a tornam passível de exploração. O sistema brasileiro se assemelha assim aos demais países capitalistas onde é consagrado o direito a propriedade privada do solo.
O Brasil é um dos países do mundo cuja estrutura fundiária se caracteriza pelo domínio absoluto da grande propriedade subexplorada, do latifúndio. Quando analisamos os dados estatísticos disponíveis, observamos que há uma grande quantidade de minifúndios, de propriedades de extensão diminuta, ao lado de um numero relativamente pequeno de grandes propriedades que ocupam a maior parte da área apropriada no país. Fato que indica que a grande maioria dos agricultores brasileiros ou não possui terras próprias, tendo que trabalhar em terras alheias, em condições muito desfavoráveis, face ao sistema de relações entre empregado e patrão no meio rural, ou as possui, mas estas são insuficientes para a manutenção da família, necessitando alem de cultivar em suas terras, também precisa cultivar as terras dos grandes proprietários, nas condições impostas por estes. O mecanismo de complementação do latifúndio com o minifúndio funciona de forma a favorecer o grande proprietário, uma vez que a existência de pequenos proprietários nas proximidades dos latifúndios permite que estes disponham de uma fonte inesgotável de mão-de-obra, o chamado “exercito industrial de reserva”, á qual recorre nas ocasiões em que necessita, usando os pequenos proprietários como trabalhadores ocasionais, “como clandestinos”, sem ter uma relação contratual que os sujeite às obrigações sociais, trabalhistas. (ANDRADE. Manuel Correia. Latifúndio e Reforma Agrária no Brasil. Duas Cidades, 1980).
A questão agrária brasileira é um tema que tem despertado interesse da ciência econômica e estudada principalmente sob o ponto de vista macroeconômico, referindo-se, sobretudo a questões econômicas e sociais e envolvendo a área rural e a urbana.
Muitas vezes é relacionada à questão agrícola e a sua representação no mercado produtivo, oferta, demanda e preços dos produtos agrícolas representando uma visão microeconômica de análise. Em outros momentos tendo um caráter mais fundiário, estudando as formas de propriedade e distribuição de terra, a reforma agrária e sua funcionalidade, o que levou durante muito tempo evitar o uso da expressão agrária, principalmente durante o período do regime militar no Brasil.
De forma mais ampla, incluindo todas estas abordagens, a problemática agrária ganha ênfase a partir da década de 1980, estudando as conseqüências da industrialização e modernização da agricultura brasileira que influenciam no processo de transformação capitalista no campo.
No entanto, desde a inserção da agricultura no processo de industrialização surgiram várias discussões, quase todas enfatizando uma disfuncionalidade entre o meio urbano e o rural. Esta discussão que se intensifica a partir dos anos 50 envolveu estudiosos de várias áreas; são autores considerados clássicos da questão agrária no Brasil e que tratam deste assunto de forma mais organizada ao longo do século XX.
Entre as contribuições geradas nesse período estão dois autores representativos dessas discussões: Caio Prado Junior e Ignácio Rangel. O primeiro tinha como ponto de análise a questão social e da classe trabalhadora. Já para o outro autor a modificação na estrutura agrária no Brasil tinha um caráter mais econômico, ou seja, de inserção do setor agrícola no processo de industrialização.
Com este trabalho procura-se fazer uma contraposição entre estes dois autores, abordando o que é a questão agrária para cada um deles e a solução proposta em diferentes momentos históricos, permeando a discussão com outros autores que contribuíram para a análise da questão agrária no Brasil.
2. Contextualizando a Discussão Sobre a Questão Agrária no Brasil
A questão agrária que se torna ponto de discussão acadêmica e política no Brasil, a partir do final da década de 1950, tem como base de análise a economia brasileira desde a época colonial e sua dependência do bom desempenho das exportações agrícolas, até o início da Nova Republica.
Antes de 1930, o foco de análise era a estrutura econômica brasileira caracterizada pela dependência de suas exportações agrícolas, os complexos rurais e pela vulnerabilidade mediante as crises do mercado internacional, denominado por Maria Conceição Tavares (1975) de um modelo de desenvolvimento voltado para fora.
A análise muda de foco, a partir de 1930 com a mudança na forma assumida pela economia frente às crises do mercado internacional, ocasionando o que Celso Furtado (1986) chamou de deslocamento do centro dinâmico da economia brasileira.
Este deslocamento ou ruptura do modelo econômico que ganha força a partir da década de 1930, e que tem um impulso a partir da década de 50, com o Plano de Metas no governo Juscelino Kubitschek, se estende para os períodos subseqüentes e compõe um forte avanço dos setores industrial no Brasil, caracterizado pelo Programa de Substituição de Importações, resultando num aumento da participação do Estado, fundamentando e aguçando a discussão agrária no país.
Neste período, a agricultura brasileira teve como principal papel abastecer os centros urbanos e gerar divisas para financiar as importações necessárias à industrialização por substituição de importações. Entre as principais características do ciclo expansivo impulsionado pelo Plano de Metas, de acordo com Serra (1983), encontra-se um setor agrícola relativamente marginalizado em relação ao processo de desenvolvimento urbano-industrial proposto pelo plano.
É neste mesmo período que a questão agrária com um caráter mais fundiário ganha força, manifestado principalmente pela luta ao aceso a terra a partir de 1955, com a fundação das ligas camponesas, inicialmente no Nordeste e em seguida em todo o país. A discussão era a ausência de uma reforma agrária, em que a existência de grandes latifúndios ocasionando concentração de renda, impedia a criação de um mercado consumidor mais amplo para a indústria.
As mudanças na sociedade brasileira a partir de 1960, caracterizada por uma política econômica recessiva de combate a inflação, uma instabilidade política dos governos populistas e o regime militar, norteiam o rumo da discussão referente à questão agrária tanto acadêmica como política.
A discussão recorrente no Brasil era de que o modelo de desenvolvimento do país baseado na substituição de importações havia se esgotado e era necessário programar um novo modelo baseado na consolidação do modelo urbano-industrial que estava ainda embrionário no país.
Com alicerce no diagnóstico tanto das correntes neoclássicas quanto marxistas de que a agricultura que não incorpora tecnologias, não aumentava a produção e por isto se constituía em barreira para o desenvolvimento da industrialização do país, o governo militar formula políticas visando ganhos de produção e produtividade com a finalidade de substituir os insumos tradicionais por insumos modernos no setor agrícola.
Segundo a concepção dos economistas estruturalistas, no Brasil a agricultura atrasada impedia que o crescimento da oferta de produtos agrícolas acompanhasse a demanda urbana, constituindo-se em constantes choques de oferta e demandas e que levavam a elevação dos preços ocasionando inflação.
A partir de 1968, com o aumento da repressão política a palavra agrária desaparece, o que se discute é a adequação da agricultura a sua funcionalidade para economia brasileira. Na fase do milagre brasileiro a crença era de que o crescimento da produtividade da agricultura resolveria os principais problemas econômicos do país.
A agricultura neste período deveria cumprir algumas funções para o projeto de planejamento do desenvolvimento de industrialização no país, como liberar de mão-de-obra e fornecer alimentos e matérias-primas a fim de aumentar a oferta e diminuir os preços na indústria, além de transferir capital e gerar divisas, contanto com um arcabouço institucional como crédito rural, pesquisa agrícola, preços mínimos e extensão rural.
Na década de 80, após crises econômicas ocasionadas pelos choques do petróleo, aumento do déficit público e instabilidade da economia e com o processo de abertura política, ressurge também o debate sobre a questão agrária que volta aos centros acadêmicos e políticos na Nova Republica, com o programa de Tancredo Neves, propondo fazer uma reforma agrária no Brasil através do I Plano Nacional de Reforma Agrária.
Segundo Batalha (2001), desde 1995 a questão agrária volta a ganhar ênfase, dado o aceno do governo federal em buscar alternativas políticas que atenuem os problemas da agricultura brasileira.
O mesmo autor traz a definição do que é a questão agrária e ainda faz uma diferenciação com a questão agrícola.
De forma resumida, este tem sido o contexto das discussões sobre a questão agrária no país, tanto nas esferas políticas e acadêmicas e entre as diferentes áreas do conhecimento. E o modo como são interpretadas e as soluções propostas compõem a discussão que segue nas visões de Ignácio Rangel e Caio Prado Júnior.